O Dilema do Homem Moderno

by - junho 04, 2016



O Dilema do Homem Moderno


Atenção: este artigo não incita, em hipótese alguma, o suicídio. O único propósito deste texto é apresentar ao leitor uma importante corrente filosófica do século XX. Se você tem em si pensamentos do tipo, sugiro pular este post e buscar ajuda.

"Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia."

Albert Camus


É com essa célebre frase, proferida por um dos maiores filósofos do absurdismo, que damos início ao diálogo sobre o dilema do homem moderno. Ao longo de toda a história humana, o homem procurou incansavelmente um sentido para a vida. Se a morte está de pé, com os braços abertos, ao final da trilha da vida, qual é o seu objetivo? Que significado supremo pode nos ser dado? Que importância real tem a nossa existência? Por que eu estou aqui? Quem sou eu? A simplicidade aparente dessas questões, que comumente nos vem à cabeça em momentos de reflexão ou solidão, nos engana.

 

Quando pensadas seriamente, nos deparamos com um abismo sem fim. Muitos filósofos se atreveram a tentar respondê-las, mas apenas alguns poucos, munidos de capacidade abstrativa, coragem e honestidade, conseguiram alcançar as respostas. Até o século XVIII, a solução para todas essas questões era uma só: Deus. É Ele quem está na linha de chegada da corrida da vida. É escolhermos livremente conhecê-lo o objetivo final de nossas vidas. Há um significado maior que aquele que atribuímos a nós mesmos. Somos moralmente importantes, assim como nossas escolhas. Estamos aqui para usufruir do maior presente de todos: a vida. Todos fomos cuidadosamente criados com nossas individualidades: mente, cérebro, corpo, espírito e alma. Um conjunto de propriedades a quem podemos chamar de "eu".

 

No entanto, tudo mudou radicalmente quando a "luz da razão" caiu sobre a humanidade. Já no início do século XIX, o homem moderno fez dela a arma para se libertar das amarras da religião. Ao expulsarmos Deus do plano da existência, também nos livramos de tudo aquilo que nos reprimia e coibia. Quando finalmente livres, pudemos saciar de todas as maneiras os nossos desejos e anseios, tão reprimidos a tempos atrás sob a alcunha do pecado. A razão havia vencido. Em meados do século XIX, com ares de unanimidade, Nietzsche proclamou: Deus está morto. E com ele, todas as regras que norteavam o comportamento humano. Não havia mais um legislador moral para nos governar, um inferno ou pecados para nos amedrontar, um paraíso para que possamos desfrutar, anjos para nos proteger ou um Messias para nos salvar. Não havia mais ninguém olhando por nós. Finalmente, estávamos livres e sozinhos.

 

No final do século XIX, o Cristianismo e seus dogmas já agonizavam em seu leito de morte. "A inquisição finalmente acabou! Deus está morto!", bradavam os novos iluminados. No entanto, o século que estava por vir nos mostrou que a liberdade tem um preço. Diante de milhões de mortos, perseguições sistemáticas, estupros em massa, genocídios, do surgimento de estados totalitários e de campanhas globais de morte, o homem se viu, não mais desiludido com Deus, mas consigo mesmo. O Deus sangrento e vingativo do Antigo Testamento já não parecia mais tão cruel, diante dos massacres humanos auto perpetrados durante o século XX. Uma vez despojados do romancismo cristão e de seus dogmas, nos vimos obrigados a lidar com os nossos próprios dramas, sozinhos. Carentes de uma orientação, coube a nós a missão de condenarmos a nós mesmos.

 

Éramos como crianças órfãs, completamente abandonadas no mundo. Afinal, na ausência de uma autoridade competente para nos guiar pelo caminho da moral, como, então, deveríamos nos comportar? A resposta não tardou: como não havia mais um legislador moral, coube a nós, reles infantos, a criação de nossos próprios códigos morais. Afinal, estavamos emancipados. No entanto, todas as nossas regras eram baseadas nos nossos próprios gostos e opiniões pessoais. A essa altura, novas questões surgiam: quem ou o que nos obriga a ser moral? Por que devo agir moralmente? Quem ou o que nos confere legitimidade enquanto autoridades morais?

 

Quando nos demos conta de que nossas opiniões e gostos pessoais não são mais válidos que os de qualquer outra pessoa, finalmente entendemos que nada mais nos obrigava a ser moral. Não tínhamos de obedecer a ninguém além de nós mesmos. Não estávamos mais comprometidos a agir moralmente, e nada nos conferia a legitimidade para dizer aos nossos iguais como deveriam se comportar. Diferentemente do Deus deposto, não éramos autoridades morais competentes, mas apenas regicidas ávidos pelo poder. Quietos, vimos então nossas regras morais se dissolverem em um mar de opiniões e gostos pessoais. A quietude deu lugar ao drama quando vimos desabar nossas verdades morais mais sólidas. Uma vez que tudo passou a ser um mero ponto de vista, se tornou impossível condenar nossos iguais. Éramos, então, como juízes sem um martelo.

 

Não havia mais diferença entre viver como Madre Teresa ou como Adolf Hitler. Não havia mais como condenar terroristas, assassinos e estupradores. Não havia mais nenhuma autoridade moral competente para nos julgar. Alguns, como Nietzsche, foram convencidos de que as regras morais haviam perdido o sentido. No entanto, não havia alternativa senão continuar a seguir, com ainda mais afinco, seus gostos e desejos pessoais. Em outras palavras, se tornaram os seus próprios deuses. Todavia, eram mais parecidos com os deuses do Olimpo: cheios de rancor, ódio, ciúme e toda a sorte de sentimentos humanos. Alimentados por suas próprias disputas, se afogavam cada vez mais no lodo da abominação moral. E foi somente diante das atrocidades cometidas nas duas grandes guerras mundiais que o homem refletiu. Como consequência direta, a humanidade foi tomada por uma profunda desilusão com sua própria natureza. No final das contas, os homens não eram deuses, mas reles mortais, frágeis e falhos.

 

Como resposta natural às atrocidades auto infligidas, o homem passou a refletir com maior profundidade sobre sua condição. Enquanto isso, o século XX se transformava no período mais letal até então visto, mais mortífero que todos os séculos anteriores somados. Agora que não havia mais um Deus a quem culpar ou a quem apelar, a humanidade se viu obrigada a suprimir o orgulho e reconhecer toda a culpa, tal como o apreço pela maldade. Logo, aqueles que pensavam ser os próprios deuses se viram na figura do próprio diabo.

 

E, assim, descobrimos da pior maneira que, ao matarmos Deus, também matamos a nós mesmos. Nas palavras de Nietzsche, "como nós, assassinos de todos os assassinos, consolaremos a nós mesmos?". Ainda no século XX, JeanPaul Sartre e Albert Camus foram os primeiros a relatarem o "nojo", a "náusea" e o "absurdo" de se estar vivo em meio à bestialidade e à ameaça da tragédia. O homem finalmente havia percebido que sua única e fiel amiga era a morte. Foi somente quando o homem se viu abandonado na infinitude do universo é que se tornou possível compreender verdadeiramente a sua condição.

 

Logo, as questões existenciais voltaram a inquietar os filósofos: que significado supremo pode nos ser dado? Que importância real tem a nossa existência? Por que eu estou aqui? Quem sou eu? Agora, as respostas para essas perguntas deviam respondidas sob a ótica da nova realidade: fria e nua. Se é o universo o único responsável pela nossa existência, eu e você somos um subproduto acidental da natureza, resultado de uma soma de matéria, tempo e acaso. Não há razão alguma para que existamos e tudo o que nos espera é o absurdo da morte.

 

Uma vez que o universo carece de um sentido último, não parece haver nada que possa preencher o vazio da existência. Nós somos, portanto, desafiados a aceitar que não somos mais que um recipiente descartável. O homem, tal como tudo aquilo que compõe o universo, eventualmente perecerá, e será como se nunca tivesse existido. Essa constatação fica ainda mais clara quando confrontada com as teorias mais recentes da cosmologia: em 1929, Edwin Hubble observou que as galáxias estão lentamente se afastando. Em outras palavras, descobriu-se que o universo está em constante expansão. Seja sua forma hiperbólica ou plana, isso implica que ele continuará se expandindo ad infinitum. Eventualmente, todas as galáxias para além das do seu grupo local, deixarão de ser visíveis.

 

Mais à frente na linha do tempo, todas as estrelas de todas as galáxias irão morrer e nada sobrará para que se possa originar novas galáxias e novas estrelas. Em consequência, o universo passará a ser um lugar escuro e frio, com a malha espacial tornando-se cada vez mais esparsa e com a temperatura caindo cada vez mais, até se fixar no zero absoluto. Então, tudo o que restará é um grande cemitério de corpos celestes imerso em uma escuridão absoluta. Uma vez compreendido o final trágico e inevitável do universo, nos vemos como prisioneiros condenados à morte, apenas aguardando o dia de nossa execução.

 

No romance A máquina do tempo, do escritor inglês H. G. Wells, a gravidade de nossa condição existencial fica mais uma vez em evidência: o viajante do tempo criado por Wells segue rumo ao futuro distante para descobrir o destino do homem. No entanto, tudo que encontra é uma terra morta, exceto por alguns liquens e musgos, orbitando em torno de um gigantesco sol vermelho. Os únicos sons que ecoam são o do vento soprando e a gentil ondulação do mar. O mundo estava em silêncio. Todos os sons produzidos pelo homem, o balido das ovelhas, o trilado das aves, o zumbido dos insetos, a agitação das cidades que compõe o cenário de nossa vida, tudo isso havia deixado de existir para sempre. E, assim, angustiado, o viajante do tempo de Wells retornou. Mas voltou para onde? Bem, para um mero ponto anterior à corrida despropositada rumo ao esquecimento. Esse é o cenário inevitável e perturbador que enfrentamos. Sartre chegou a defender a ideia de que deveríamos "inventar" um sentido para as nossas vidas, de modo a suportarmos o absurdo de vivê-la. No entanto, por que deveríamos nos esconder em um castelo de ilusões ao invés de encarar, com coragem, a face nua e cruel da realidade?

 

De fato, o homem parece estar condenado à destruição num universo em um processo lento e angustiante de morte. Uma vez que todos nós deixaremos finalmente de existir, junto a tudo aquilo que criamos, não faz nenhuma diferença se algum dia realmente existimos. Nós somos, portanto, não mais importantes do que um enxame de mosquitos ou uma manada de porcos, pois o fim de todos nós é exatamente o mesmo. O mesmo processo cósmico cego que nos lançou à existência, no final, nos engolirá. Então, a pessoa a quem chamamos de “eu” finalmente deixará de existir.

 

Aqui, "deixar de existir" não significa apenas deixar o plano terrestre pela porta dos fundos. Mais que isso, significa não mais ser. Morrer é a transição do esquecimento para o esquecimento, ou ainda, a passagem do nada para o nada. Nesse cenário, o "nada" possui um significado perturbador: coisa alguma. O nada é justamente aquilo que não possui predicado algum. O nada simplesmente não é. Morrer significa ser destituído de toda e qualquer propriedade, inclusive a de "ser". Como percebido por muitos filósofos absurdistas, nos soa muito estranho, e talvez inassimilável, o fato de estarmos lentamente deixando de existir, conscientes ou não. Tal como as memórias de um portador de Alzheimer, estamos sendo, aos poucos, apagados da existência. Sem choro e sem alarde.

 

É verdade que alguns saem de cena mais cedo que outros, mas é precisamente o elemento surpresa que torna o teatro da vida tão bizarro e aterrorizante. Uma hora estamos vivos, saudáveis e felizes, enquanto fazemos planos para o futuro. Outrora, como um apagão, estamos mortos. Para o filósofo absurdista, todo o espetáculo é sem sentido: não há plateia alguma, tampouco um roteiro pré-definido. Empurrados no palco repentinamente, tudo o que resta é entretermos uns aos outros, à espera da libertação da morte.

 

Contemplando o Teatro do Absurdo, o dramaturgo Samuel Beckett escreveu uma peça teatral (1969) em que as cortinas se abrem revelando um palco entulhado de lixo. Durante exatos 35 segundos, a plateia é convidada a prender a respiração. Silenciosos e confusos, todos contemplam aquela sujeira. Em meio ao lixo revirado, um vagito (choro de nascimento) começa a ecoar. Em seguida, uma lenta respiração pode ser ouvida, em harmonia com o aumentar e diminuir da intensidade da luz. Por fim, há um segundo vagito, idêntico ao primeiro, e a peça termina. Logo, os holofotes se apagam e o pano cai. É tudo. Para Beckett, isso é o homem moderno: um lixo cósmico sem significado maior. Já nascemos predestinados à insignificância e deixaremos a existência exatamente da mesma maneira, não importando o que fazemos ou produzimos.

 

Uma vez que o teatro da vida é dirigido pelo universo (um ente cego, impessoal e sem vontades) o resultado é necessariamente uma peça irracional. Logo, o homem se percebe estrelando o teatro do absurdo de Beckett, numa atuação mórbida, insignificante e cruel de marionetes presas a situações sem solução, forçadas a executar ações repetitivas ou sem sentido, com quadros não necessariamente conectados e que se alternam entre a comédia e a tragédia. Nesse cenário, a atuação individual é insignificante, sem propósito e irrisória a ponto de não mudar em nada a totalidade da peça. Dada essa circunstância, a própria existência e seus efeitos (toda a ação, sofrimento e sentimento) se tornam também sem sentidos e vazios. Dito de outro modo, não importa o que sentimos, o que fazemos ou o que sofremos.

 

Para o filósofo absurdista alinhado com o materialismo filosófico, não há no universo razão alguma para acreditarmos que nós, seres humanos, sejamos objetivamente mais valiosos do que um rato ou uma pedra. Se não há, em nós, algo como uma alma; se mente e cérebro são a mesmíssima coisa, tudo quanto pensamos e fazemos é determinado pelas leis mecânicas e deterministas da natureza. Não há livre-arbítrio. E sem liberdade, nenhuma de nossas escolhas realmente importa. São como os gestos espasmódicos dos membros de uma marionete controlada pelos cordões da percepção sensorial e da constituição física. E que valor tem uma marionete e seus movimentos? Como reles brinquedos de corda, somos repetidamente alimentados pelas mãos do universo, até que finalmente paremos de funcionar.

 

Além disso, a natureza, impiedosa, nos brindou com o dom da senciência. Aptos a sentir o mundo, somos convidados a experienciar ciclos intermináveis de prazer e dor. É verdade que uns sentem mais que os outros, o que faz dos portadores de analgesia congênita os verdadeiros ganhadores da loteria genética. Por outro lado, muitos de nós são obrigados a conviver com o sofrimento das doenças terminais. No entanto, nesse cenário, elas são meros efeitos colaterais de um processo evolucionário cego que não se importa com vidas alheias. Afinal, o DNA não se importa. Ele simplesmente é como é. Em alguns momentos, é possível que ocorra em nós surtos ilusórios de moralidade, como um desejo desesperado de emergir à superfície dos valores em busca da afirmação de alguma ação, propósito ou sentido no mundo, mas que logo desaparecem no ar. Quando de volta ao abismo do despropósito, somos obrigados novamente a conviver com os fatos nus e sem valor da existência.

 

Albert Camus foi um dos poucos filósofos que abordou corajosamente o que ele considera ser a causa maior existencialista: será que a realização da plenitude e absurdo da vida exigem o suicídio? Essa pergunta nos empurra para dentro do campo da ética normativa. Diferentemente da ética descritiva, cujo propósito é simplesmente descrever as ações morais, a ética normativa trata das regras que prescrevem o comportamento humano. Em outras palavras, ela nos diz que devemos nos ater não àquilo que os homens estão fazendo, mas sim ao que devem fazer. Portanto, nesse caso, a questão que nos importa não é o porquê de os homens se suicidarem, mas se devem ou não fazê-lo.

 

Aqui, suicidar-se significa cortar os cordões da percepção sensorial e da constituição física para que, finalmente, possamos nos libertar do controle mecânico e absoluto do universo. É o grito de libertação, o epílogo do teatro macabro da vida, o ato final. Nesse cenário, o suicídio é sempre um ato dramático, um espetáculo bizarro. A angústia preludia o clímax, enquanto, a cada ato, converge-se mais e mais para um final súbito. A separação entre o homem e seu titereiro é irretratável. Uma vez rompidos os cordões, perde-se os movimentos e a atuação termina.

 

Sartre afirma que o suicídio é errado porque é um ato de liberdade que destrói todos os outros atos futuros de liberdade. É uma afirmação do ser mediante a qual a pessoa finalmente nega seu ser. É, pois, um ato próprio que se traduz em uma tentativa de renegar-se. É a escolha que elimina todas as escolhas. O suicídio é baseado no desejo do homem de ser aliviado do tipo de existência que tem. Conforme disse Santo Agostinho, o suicídio é um fracasso da coragem, é o "escapismo" existencial. Em sintonia, Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro, ressalta que o suicídio é uma espécie de truque teológico que consiste em uma tentativa desonesta e covarde de escapar do absurdo. Albert Camus, por sua vez, nos diz que é preciso continuar vivendo e convivendo com o nojo e a náusea, dia após dia, momento após momento, para viver o mais possível, já que não se pode viver o melhor possível. Somente assim, devorando quantidade em vez de qualidade, é possível encarar honestamente o absurdo da vida.

 

Mas se todos os nossos planos e esperanças repousam no nada e somos meros acidentes do acaso, empurrados na existência sem razão alguma, que motivos reais dispomos parar continuar a viver? Se todos nós não passamos de um bocado de lodo que evoluiu racionalmente, condenados a uma vida sem propósito, alternando incansavelmente entre o prazer e a dor, por que não nos libertarmos?

 

A conclusão, mais uma vez, nos desafia: se o verdadeiro fim natural da ação humana não é a satisfação do prazer, mas a exclusão da dor, morrer é libertar-se. Se nós somos, de fato, seres racionais, não seria apropriado evitarmos toda a dor e sofrimento? Não seria sensato adiantar um resultado final já estabelecido? Afinal, mais irracional do que lutar contra uma vida absurda, é vivê-la. O filósofo alemão Philipp Mainländer, consciente que a vida não possui qualquer valor ou propósito inerente, nos indaga: seria não ser melhor que ser?

 

Se há na vida a supremacia do mal sobre o bem, sendo o mal a privação do bem-estar, a balança da vida tende ao não-ser? Para Mainlander, sim. E assim o fez: aos 33 anos, o filósofo alemão se enforcou sobre uma pilha de papéis que viria a ser publicada tempos depois sob o título de "A Filosofia da Redenção". Segundo Schopenhauer, a pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer, pois, para ele, vida é em grande parte sofrimento: você sofre perdas, se decepciona e adoece. Se a vida fora despedaçada pela indiferença de um universo sem sentido e a dor consome o que resta dela, aparentemente, só nos resta uma porta de saída, a qual Schopenhauer nos conduz:

 

- "A esperança de salvação para o homem somente pode ser encontrada na renúncia ao mundo e a todas as suas solicitações, na mortificação dos instintos, na autoanulação da vontade e na fuga para o nada."

Arthur Schopenhauer

 

Nesse cenário, de uma forma ou de outra, o universo termina em nada. E, uma vez que ele termina em nada, o homem é nada. Desta forma, a unidade do mundo se apresenta na escolha do ser primordial de nada ser. Aniquilar-se completamente; desistir de ser. Para Schopenhauer, não se pode escapar do ser, senão pela livre escolha de não mais ser. A redenção humana, portanto, passa a ser traduzida no objetivo de redimir-se de suas dores e angústias. Ao nos libertarmos da agonia de ser, abdicamos da pessoa a quem chamamos de “eu”, a qual deixará de existir, não será mais. Para o filósofo pessimista, o suicídio é a porta de saída de um mundo de dores e pavores, onde a maior das dores é compreender o absurdo da vida. 

 

De fato, não parece haver muitos motivos para que continuemos a suportar o constrangimento de se estar vivo, de modo que todo o sentido que há no mundo não passa de ilusões que ajudam a maquilar a cruel indiferença da realidade. Em contrapartida, parece haver motivos razoáveis para nos libertar de toda dor e sofrimento que experimentamos a cada dia, e, principalmente, para adiantarmos um resultado inevitável. Aqui, é importante notar que o algoritmo que fundamenta a calculadora da vida é o utilitarismo. O cálculo que fazemos, portanto, é o do bem-estar. Se o saldo de prazer está positivo, ser se torna melhor que não mais ser. Agora, se o saldo de prazer está negativo, não mais ser parece a escolha mais racional.

 

É verdade que a linha que separa a dor do prazer é muitas vezes tênue. Uma vez que sentimos o mundo de maneiras diferentes, a dor pode ser facilmente tomada como prazerosa. Ainda assim, há de se considerar que até mesmo o resultado do cálculo do prazer não é absoluto. Se você tem vivenciado uma sequência interminável de dores, não significa que isso perdurará. É possível que se inicie uma sequência de prazeres. Assumir a invariabilidade dos resultados aqui é incorrer no problema da indução, proposto a nós por David Hume. A grosso modo, se um fabricante de cadeiras realizou o teste de segurança em 70 de suas 100 produzidas, não se pode assumir racionalmente que todas são seguras. Do mesmo modo, assumirmos que teremos pela frente uma vida de sofrimento em função de um histórico pessoal desfavorável é irracional. O erro está em pressupor que uma sequência de eventos no futuro ocorrerá como sempre foi no passado, sem uma justificativa sólida.

 

Karl Popper tenta nos redimir em favor da libertação final dizendo que "todas as cadeiras são seguras, pelo menos até que alguma evidência em contrário seja descoberta". Ou seja: devemos assumir que se tivemos uma vida de sofrimentos até agora, assim o será também no futuro, até que alguma evidência nos mostre o contrário. No entanto, a expectativa da evidência surge exatamente como a barreira racional que nos separa de uma decisão final, esteja ela contra ou a favor da vida. Aqui, a última frase do romance de Sartre, Entre Quatro Paredes (1944), nos coloca contra a nossa própria parede: "[...] devemos continuar?"

 

Independentemente da resposta à questão, voltamos à estaca zero. Mas então como podemos escapar do Absurdo? Bem, simplesmente não podemos. Segundo Camus, somos como um pássaro em seu primeiro voo. Convivemos diariamente com a desconfiança e a ameaça da tragédia. No entanto, devemos observar que esta é a maior prova de que sentimos e vivemos, à medida que a angústia existencial desperta em nós uma estranha paixão. Ao contemplarmos a superfície da morte e todo o seu absurdo, intuitivamente - ou contra intuitivamente - sabemos que somos capazes de saltar e planar, e o fazemos, principalmente, porque nossas asas são feitas de esperança. E essa esperança não repousa no nada, mas na certeza 'quasi-irracional' de que haverá um amanhã. Essa é, pois, a mesma certeza que temos em nós quando afirmamos a beleza ou o amor no mundo. São reais, independentemente do que pensamos ou sentimos, mesmo que não tenhamos como justificá-las. Da mesma maneira, sentimos que nós, de algum modo, também somos reais e moralmente valiosos. Sentimos que nossas escolhas importam.

 

Se a existência de um propósito maior que aquele que conferimos a nós mesmos é a condição para que possamos afirmar racionalmente nosso valor no universo, então, somente em um mundo onde há um sentido objetivo é possível ser consistentemente feliz. Ironicamente, este é o mundo onde Deus habita. O dilema do homem moderno consiste na clausura de um castelo de ilusões, onde tudo tem um propósito e um sentido, mas que foram elaborados apenas para maquiar os fatos nus e sem valor da existência. O homem moderno vive como se existisse um valor ou propósito verdadeiro no mundo porque é incapaz de conviver com os fatos nus da existência.

 

A incapacidade de suportar a verdadeira faceta da realidade o empurra para dentro do castelo de ilusão, quase como um instinto natural de autopreservação. Afinal, um mundo moralmente indiferente é um mundo impossível de ser habitado. Sabendo disso, o homem passa, dia após dia, tentando convencer a si mesmo de que há propósito e valor no mundo, enquanto é assombrado pelas sombras da indiferença implacável da natureza.

 

Para finalizar este texto, deixemos mais uma vez que Albert Camus resuma a frágil condição existencial do homem moderno:

 

"A grande parte da nossa vida é construída sobre a esperança do amanhã, do amanhã que nos aproxima da morte, e é o último inimigo; pessoas vivem como se elas não tivessem a certeza da morte; uma vez despojado do romancismo comum, o mundo é um estranho e desumano lugar; o verdadeiro conhecimento é impossível de ser explicado pela racionalidade da ciência em favor do mundo: suas histórias, em última análise, no sentido de abstrações, se dão em metáforas. Desde que o momento absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante de todas as paixões."

Albert Camus

 

Andrei S. Santos


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